Em 1998, foi publicada a Lei n.º 36/98, de 24 de Julho – Lei de Saúde Mental. Acaba por ser mais conhecida como a lei do internamento compulsivo, mas esta é uma visão redutora da mesma. Inicia-se com uma visão sobre o que deverá ser o tratamento das doenças mentais. Saliento os pontos chave do artigo n.º 3: tratamento prioritário na comunidade; menor restrição possível; internamento em hospital geral; reabilitação psicossocial em estruturas residenciais, centros de dia e unidades de treino e reinserção profissional, inseridos na comunidade e adaptados ao grau específico de autonomia dos doentes.
A doença mental grave é extremamente incapacitante. Diagnosticar e tratar os casos mais graves, para dar não só tranquilidade e qualidade de vida, mas controlo da sintomatologia e recuperação. Esta deverá ser a prioridade dos serviços de psiquiatria. Longe vão os tempos em que o foco terapêutico era a remissão completa de sintomas. Hoje, compreende-se que as pessoas podem viver com alucinações e delírios, desde que controlados e com intervenções que apoiem a sua autonomia. Procurar a remissão completa é sobrecarregar com medicação a pessoa e afetar gravemente a sua capacidade de funcionar em sociedade e de produzir na sua vida profissional. No progressista modelo anglo-saxónico, deixamos o médico autocrata e trocamos por uma decisão partilhada, com muitos momentos informativos das diferentes abordagens. Vamos além dos sintomas e procuramos diminuir os efeitos secundários ao mínimo e permitir à pessoa portadora de doença mental a sua melhor versão.
Qual é a intenção da Lei de Saúde Mental, para além do internamento compulsivo?
Podemos depreender lendo o artigo n.º 3 que de facto, praticamente todos os serviços de psiquiatria do país estão de costas viradas para os princípios da Lei. Felizmente nos últimos dois anos, com a pandemia e o Plano de Recuperação e Resiliência, definiu-se como prioridade o desenvolvimento de Equipas Comunitárias por todo o país.
Na região temos internamento no privado, contra o espírito da Lei. Temos grandes investimentos em estruturas do tempo asilar, contra o princípio da Lei. Temos um serviço de psiquiatria que se recusa a ser comunitário, contra o princípio da Lei. Não temos dignidade na reabilitação psicossocial, nem apoios estruturados, nem o reconhecimento da importância destas estruturas, contra o princípio da Lei. Só me cabe dizer que a psiquiatria da Madeira está, para todos os efeitos, fora da Lei.
As equipas comunitárias existem desde os anos 80 do século XX em alguns hospitais. São equipas multidisciplinares, muitas com instalações próprias. Equipas dedicadas aos modelos de seguimento assertivo na comunidade, que implica uma mudança de paradigma. Os serviços de saúde não ficam à espera que os doentes apareçam, mas vão ativamente procurar e ajudar junto da comunidade e domicílio, os casos mais graves das doenças mentais. Isto só é possível com uma equipa completa: psiquiatras, psicólogos, enfermeiros especialistas em saúde mental, assistentes sociais e outros profissionais especialistas na reabilitação. Especialistas que articulam com os cuidados de saúde primários, Segurança Social, Centro de Emprego, estruturas de Reabilitação Psicossocial, residências de apoio, forças de segurança, entre outras.
Poderão os técnicos ou serviços recusarem-se a progredir? É a opinião dos psiquiatras individuais acima da Lei? Quando deixará a psiquiatria da Madeira de ser fora-da-lei?
Publicado a primeira vez em Jornal da Madeira